Por Heloisa Villela, de Nova York
– Existe um número
muito maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e é
importante, para a indústria farmacêutica, fazer com que as pessoas que são
totalmente saudáveis pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de se
fazer isso. Uma delas é mudar o padrão do que se caracteriza como doença. Outra
é criar novas doenças.
Parece teoria
conspiratória. Mas a declaração da médica e professora Adriane
Fugh-Berman é baseada em anos de pesquisa a respeito das práticas da indústria
farmacêutica e da facilidade com que ela manipula os médicos, usados não apenas
para vender remédios, mas também para promover doenças. No momento, ela está
pesquisando algo que descobriu faz pouco tempo. Representantes de fabricantes
de material cirúrgico muitas vezes são vistos dentro de salas de operação
“ajudando” os cirurgiões. “Que relacionamento é esse?”, quer saber a
pesquisadora.
Adriane Fugh-Berman
é formada pela escola de medicina da Universidade Georgetown com especialização
em medicina familiar. Militou em uma organização voltada à saúde da mulher e
ouviu muitos desaforos de médicos, há duas décadas, quando reclamava que não
existiam estudos comprovando a necessidade de tratamentos hormonais para
mulheres na menopausa. Existia, isso sim, risco — como mais tarde ficou
comprovado. O tratamento hormonal aumentou em muito os casos de câncer de mama
e a prática mudou. Antes disso, ela ouviu muitas críticas em conferências e
seminários médicos.
Quando embarcou no
estudo e no programa de educação a respeito da relação dos médicos com a
indústria farmacêutica, ela esperava uma reação ainda pior. Professora adjunta
do Departamento de Farmacologia e Fisiologia da Georgetown, ela recebeu uma
verba para estruturar o programa voltado para a educação dos médicos e para
expor as práticas de marketing da indústria, os métodos que ela emprega para
influenciar a prescrição de medicamentos. Tarefa espinhosa.
Filha de um casal
ativo nos anos sessenta, nos protestos contra a guerra do Vietnã, a médica e
professora Adriane Fugh-Berman abraçou a oportunidade e criou um blog bem
sucedido, com informações e denúncias de gente que trabalhou na indústria
farmacêutica e aprendeu as técnicas empregadas para conquistar e influenciar os
médicos. Nos últimos dez anos, ela viu resultados do trabalho nos Estados
Unidos. Mas alerta que a indústria farmacêutica vê o Brasil, a China e a Índia
como os principais mercados para a expansão da venda de remédios.
Fugh-Berman
escreveu vários artigos mostrando que a indústria seleciona profissionais ainda
em formação, nos chamados Cursos de Educação Continuada (CME). Vendedores bem
preparados identificam possíveis formadores de opinião nos centros médicos das
universidades: médicos, enfermeiros e assistentes. Eles são paparicados.
Recebem presentes,
atenção, são convidados para jantar. Depois de uma checagem, são escolhidos os
que poderão falar em nome da indústria e servir aos propósitos mercadológicos.
Enquanto falam o que a indústria quer ouvir e divulgam, no setor, a visão das
empresas e continuam recebendo todos os privilégios. Assim, as farmacêuticas
vão comprando acesso aos profissionais que podem prescrever e promover
remédios.
Viomundo – Como,
quando e por que você lançou o blog Pharmedout, da
Universidade Georgetown, do qual é diretora?
AFB
– Originalmente, fomos financiados com dinheiro de uma punição. A Warner
Lambert, que era uma subsidiária da Pfizer, foi processada pelos 50 estados
americanos mais o Distrito de Columbia por causa da propaganda de um composto
que aqui nos EUA se chama Gabapentin.
É um remédio para
convulsões, para epilepsia, que estava sendo vendido e promovido como sendo um
remédio para depressão e bipolaridade, dor muscular, tudo…
Houve um acordo na
justiça a respeito da propaganda ilegal desse remédio. [Nota do Viomundo: Em
2004, a Pfizer foi obrigada a pagar US$ 430 milhões pela propaganda fraudulenta
do remédio, vendido com o nome de Neurontin].
Os procuradores
estaduais decidiram usar parte do [dinheiro do] acordo para financiar esforços
de educação de médicos e do público a respeito das propagandas da indústria
farmacêutica. Acho que eles financiaram 26 centros médicos universitários para
criar modelos educativos.
Nós recebemos
financiamento por dois anos e tivemos melhores resultados do que os outros
projetos e somos o único projeto que continua sobrevivendo. Ao menos dos que
não existiam antes disso. Existem uns dois que já funcionavam antes.
Eu venho de um
ativismo na área de saúde. Trabalhei com um grupo chamado Rede de Saúde da
Mulher que não recebe dinheiro algum da indústria e já tinha experiência com
essa história de tentar promover mudança social sem ter orçamento…
Produzimos vídeos
com gente que trabalhou na indústria, escrevemos análises de artigos acadêmicos,
divulgamos material educacional na internet e não recebemos mais dinheiro desde
2008.
Viomundo – Como
estão sobrevivendo?
AFB – Estamos
sobrevivendo de doações individuais e organizamos uma conferência todo ano.
Pedimos algum dinheiro para a escola e cobramos uma taxa de inscrição, apesar
de deixarmos todo mundo que não tem dinheiro entrar de graça porque tem muitos
estudantes e eles não pagam nada, por exemplo.
Levantamos um
pouquinho de dinheiro com a conferência e algumas doações da escola. Por exemplo,
a verba para estudar a relação entre cirurgiões e representantes dos
fabricantes de material cirúrgico que ficam dentro da sala de operações
ajudando os cirurgiões e ninguém sabe nada a respeito dessas relações e como
começaram.
Ganhamos um
dinheiro do departamento de filosofia da Georgetown para essa pesquisa. Mas a
maior parte da nossa verba vem de contribuições individuais. Temos apenas um
funcionário remunerado. Eu não ganho nada do projeto e temos voluntários.
Quando o dinheiro acabou, em 2008, ninguém saiu. Todo mundo ficou no projeto. E
continuaram fazendo trabalho voluntário nos últimos cinco anos.
Viomundo – Em
um de seus artigos você diz que a indústria farmacêutica promove doenças
e não apenas a venda de remédios. Você pode explicar e dar exemplos do que
está falando?
AFB – Existe
um número maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e é
importante para a indústria fazer com que as pessoas que são totalmente
saudáveis pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de se fazer isso.
Uma delas é mudar o
padrão do que caracteriza uma doença. Essa é uma área muito vasta e
interessante. O padrão para diagnóstico de pressão alta e diabetes e colesterol
alto caiu ao longo dos anos.
Viomundo
– Para incluir mais gente nessas categorias de doentes?
AFB
– Exatamente. Quando eu estava na escola de medicina, uma pressão de 12
por 8 era considerada perfeita. Era o alvo. E agora é considerada
pré-hipertensão.
Viomundo
– Como aconteceu essa mudança?
AFB – Existem
comitês que fazem as recomendações para essas mudanças e eles estão cheios de
gente que recebe dinheiro das grandes empresas farmacêuticas.
Por exemplo, o
Programa Nacional de Educação sobre o Colesterol é supostamente independente e
assessora o governo a respeito da maneira de administrar o colesterol.
O comitê que
decidiu reduzir as metas tinha uma única pessoa com menos de três conflitos de
interesse com os fabricantes de remédios de colesterol. Não sei nem se era
zero, mas menos de três!
Obviamente,
qualquer pessoa tomando decisões a respeito de remédios para um hospital ou um
país não deve ter nenhum conflito de interesse com nenhum fabricante de
remédios.
Outra forma de
fazer com que pessoas saudáveis pensem que são doentes é expandir a categoria
da doença ou até mesmo criar doenças.
Por exemplo,
restless leg syndrome (síndrome da perna que não para). É uma doença real,
neurológica, raríssima.
Mas foi redefinida
de forma que se você está agitado durante a noite, pode ser diagnosticado com essa
doença.
Outro exemplo é a
doença da ansiedade social. É bom notar que a psiquiatria é a profissão mais
suscetível a diagnósticos questionáveis porque todos os diagnósticos são
subjetivos.
Dependem muito da
cultura e não existe nenhuma prova, nenhum exame para comprovar a existência da
doença. Por isso é um alvo.
Uma das categorias
que talvez tenha sido criada é essa doença da ansiedade social que antes
chamávamos de vergonha.
Outra que foi
criada é osteopenia, ou baixa massa óssea, que agora é considerada precursora
da osteoporose e a osteoporose é apenas um fator de risco. Não é uma doença, é
uma indicação de risco para quedas e fratura de ossos.
Então a osteoporose é um
fator de risco para um fator de risco de uma doença. E a osteopenia é um fator
de risco para um fator de risco para um fator de risco.
Nicotina para sempre, mas não no cigarro
Viomundo – E
eu aposto que existe um remédio para isso…
AFB – Claro. E
os remédios mais usados podem aumentar o risco de fraturas se forem tomados por
mais de cinco anos!
O Transtorno do
Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) também seria um exemplo de algo
que provavelmente existe, mas agora qualquer criança que não se comporta na
sala de aula é diagnosticada com TDAH e medicada.
Outra coisa que foi
inventada é TDAH em adultos. Antes só existia em crianças. Agora também existe
em adultos e assim podem continuar tomando remédios o resto da vida.
Existe também um
esforço para classificar o vício em nicotina como uma doença porque as empresas
que vendem produtos para ajudar a parar de fumar… as empresas de seguro de
saúde só cobrem os gastos com esses produtos por dois meses porque eles devem
te ajudar a parar de fumar. Depois de dois meses você parou de fumar e pronto.
Mas existe um
movimento das empresas que fabricam esses produtos para classificar esse vício
como uma doença para que os seguros cubram o custo do uso desses produtos pelo
resto da vida.
Assim, eles tentam
provar para os fumantes que eles não podem parar e que é melhor substituir o
cigarro por um desses produtos. Talvez seja melhor mesmo usar um substituto da
nicotina do que fumar, mas quem está tomando essa decisão são as empresas
farmacêuticas que usam formadores de opinião na comunidade médica. E essas
decisões não são baseadas em Ciência.
São tomadas apenas
porque empresas biomédicas poderosas garantem que as opiniões que são
favoráveis a elas calem as opiniões contrárias.
Metade das pessoas
que consegue eliminar o cigarro com sucesso simplesmente param de fumar. E a
indústria farmacêutica odeia isso. Quer fazer com que as pessoas acreditem que
necessitam da ajuda dela. E que não podem parar sozinhas ou talvez não possam
nunca parar.
É um recado
horrível não somente para os consumidores, mas para os profissionais de saúde
dizer: “Seus pacientes não conseguem parar de fumar”. Porque isso é o que você
tenta primeiro. Se isso não funcionar, então você usa um substituto. Mas alguns
desses produtos também têm efeitos adversos.
Viomundo
– Você diria que no fim do dia o dinheiro é a causa de todos
esses problemas? A ganância?
AFB – Acho que
o mais importante é separar a indústria farmacêutica da educação, da
regulamentação e das decisões a respeito de que remédios e tratamentos devem
ser cobertos.
Não se pode
permitir que a indústria se envolva com a educação, que influencie a
regulamentação e participe dos comitês que decidem que remédios são cobertos.
Eles podem
apresentar argumentos e, se tiverem informações, podem apresentar para o
comitê. Mas as pessoas que participam desses comitês não podem ter conflitos de
interesse.
E uma das
armadilhas é o seguinte conceito: “Eu não tenho conflito de interesses com
essas empresas em particular”. Se estou avaliando um remédio, talvez eu
tenha uma relação com a empresa B, mas estamos avaliando um produto da empresa
A. Então não é um conflito de interesse.
Isso é uma tremenda
armadilha por vários motivos. Um deles é que promover um remédio é muito mais
do que divulgar os benefícios daquela droga. Pode ser também divulgar
informações negativas a respeito de outros remédios. Divulgar informações
negativas a respeito de dietas e exercícios. E não está mencionando o remédio
da empresa com a qual tem relações.
O que muita gente
não sabe e é muito importante é que a promoção de um remédio às vezes começa
dez anos antes dele chegar ao mercado. Essa droga pode nem ter sido testada em
humanos ainda, mas a empresa já está tentando plantar a semente na cabeça dos
médicos de que a doença é um grande problema, que não é brincadeira.
“TDAH destrói
vidas. Síndrome da ansiedade social destrói vidas. É uma epidemia trágica.
Muito mais séria e abrangente do que você pensa”.
Isso começa anos
antes. Pessoas são pagas para falar sobre isso. Quando a droga chega ao mercado
você diz “graças a Deus surgiu um remédio para essa doença incurável da qual
ouço falar há anos!”.
Viomundo – Por
que a população em geral e os médicos, em particular, caem nessa armadilha tão
facilmente e com tanta frequência?
AFB – Olha,
é mais difícil enganar a população do que os médicos. É muito fácil
enganar os médicos. Por vários motivos. Ao menos nos EUA, os médicos, em geral,
vêm das classes mais altas da sociedade. Nunca venderam nada. Não têm
vendedores na família. Não têm familiaridade com técnica de vendas.
Às vezes
conversamos com estudantes que têm vendedores na família e eles identificam
claramente as técnicas de vendas. Os médicos não reconhecem. Não apenas vêm das
classes mais altas, mas também são ingênuos.
Aparentemente, nos
Estados Unidos, e não sei se isso se aplica também ao Brasil, os médicos são
mais suscetíveis a golpes financeiros. Eles são inteligentes. São muito bons
nas provas de múltipla escolha. Mas não têm esperteza. São crédulos. Para mim
foi muito interessante descobrir isso.
Viomundo – Isso
não é apenas uma maneira de desculpá-los facilmente? Eles não
deveriam ter mais responsabilidade sobre o que estão fazendo?
AFB – Mas eles não
são expostos… Ok, nós fazemos uma apresentação chamada “Porque o almoço é
importante” e trabalhamos nela com muito cuidado. Usamos psicologia social para
ajudar os médicos a perceber esses truques. Uma das coisas que fizemos na
apresentação foi, numa das primeiras vezes que a testamos, espalhei pessoas na platéia
para anotar os comentários que os médicos faziam. Pegamos os comentários mais
comuns e transformamos em slides. Depois usamos esses slides com outras platéias
e teve um efeito impressionante.
Um deles, por
exemplo, dizia: “Você está errado, os representantes das indústrias
farmacêuticas são meus amigos!” ou “eu sou muito inteligente para ser comprado
por uma fatia de pizza e você está sugerindo isso!”
Pusemos esses
comentários nos slides e depois explicamos porque estavam errados. Os médicos
ficaram chocados. Realmente chocados! Porque mostramos o que estavam pensando.
Foi muito eficaz.
As pessoas saíram
das nossas apresentações jurando que jamais receberiam um representante da
indústria novamente. Nunca iriam a um jantar pago pela indústria novamente.
Ninguém gosta de ser enganado e quando você descobre que está sendo enganado
você fica com raiva. E eles não estavam com raiva de nós e sim dos fabricantes
de remédios.
A grande maioria
dos médicos quer fazer o melhor para seus pacientes. Existem alguns que fazem
qualquer coisa por dinheiro. Mas eles são a minoria. A maioria quer fazer o
melhor para os pacientes. Mas eles não se dão conta de que as fontes das
informações que recebem são contaminadas, que estão sendo manipulados pela
indústria de diversas maneiras.
Que a indústria
controla a informação sobre remédios apresentados em encontros médicos, em
publicações médicas, em toda fonte de informação da qual eles dependem. E não
gostam quando descobrem isso.
Viomundo
– Como é possível mudar tudo isso se a indústria controla a pesquisa
e o desenvolvimento de novos remédios, os testes em humanos, tem um dos maiores
lobbies no Congresso e assim controla as leis escritas a respeito dela. Como
escapar dessa situação?
AFB – Acho que
é preciso promover mudanças em várias frentes. Algumas coisas mudaram um
bocado, nos EUA, nos últimos cinco a dez anos. Ainda existe muito a fazer, mas
acho que boa parte é expor os problemas.
Trabalhos como o da ProPublica divulgando na internet os
pagamentos para médicos, de forma simples e acessível. A divulgação obrigatória
[do que os médicos recebem da indústria] é importante. Mas não é suficiente.
Algumas mudanças
tem que vir da profissão médica mesmo. Ela tem que recusar a relação com a
indústria em nível individual ou no nível das sociedades médicas que aceitam
dinheiro da indústria. As sociedades médicas têm que parar de receber dinheiro.
Os médicos têm que
recusar presentes e temos que tirar todas as pessoas que tenham qualquer
conflito de interesse com a indústria farmacêutica dos órgãos decisórios sobre
riscos e benefícios de remédios.
Tem que haver
reformas legislativas também. Você mencionou a pesquisa, que é muito
importante. Nos EUA, há 30 anos, o Instituto Nacional de Saúde financiava 70%
de todas as pesquisas biomédicas. Agora, é a indústria que financia 70% das
pesquisas biomédicas. Isso é um problema.
Precisamos de mais
financiamento do governo. Testes financiados pelo governo às vezes descobrem
que remédios antigos são melhores do que os novos. A indústria nunca vai
financiar esse tipo de estudo. A indústria financia vários estudos e só publica
aqueles dos quais gosta, o que faz sentido de um ponto de vista de negócios.